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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Uma página de realismo fantástico





Acordou à margem do rio e viu borboletas azuis borboleteando por aí. Pensou em como era anacrônico usar a palavra borboletear num século em que não se viam mais borboletas nas cidades.



O mais próximo que havia eram aqueles irritantes bichinhos de luz que costumavam aparecer nas noites de agosto em que mudava o tempo. Foi aí, nesse pedaço do seu raciocínio delirante que ela percebeu que até então não tinha dado bola para essa variável no problema: o tempo. Afinal de contas, não é de se esperar que se acordasse ao lado de um rio cheio de borboleteantes borboletas azuis, mas era muito estranho ela não saber há quanto tempo estivera deitada ali, nem porque estava vestida com aquela estranha roupa de três cores feita do mesmo material que, séculos antes, haviam sido construídas as bolas de futebol.

Dando bola para o assunto da bola, a última tendência para o verão seria justamente o começo do século XXI, naquela distante época que ousou convencionar-se como pós-modernidade. Ah, pós-modernidade! Aquele povo era tão cool com seus cabelos esvoaçantes, suas roupas multicoloridas e seus sons que misturavam guitarra elétrica com sintetizadores. Mal sabiam eles que moderno mesmo era fazer música com escalas semitónicas naqueles instrumentos pseudo-mentais inventados pelo dr Machina que faziam com que cada um em um show ouvisse sua própria música, a harmonia de suas próprias sinapses mentais lagarteando em sinestesias tão peculiares que todo indivíduo, envolto em sua própria viagem, era capaz de construir sua própria poesia. E então tudo o mais ficou supérfluo, até porque o suprassumo do individualismo, a própria epítome da edificação de si mesmo havia sido alcançada e o resto – todo ele – virou lembrança para aqueles desocupados que se preocupavam ainda com a ciência.

Ainda se lembrava da emoção que sentira ao ver, numa tela plana – isso mesmo, uma tela plana, sem nenhuma interação! – aos vídeos da final da copa de 2014 quando Argentina e Alemanha se enfrentaram numa mítica partida de futebol no estádio do Maracanã. É claro que hoje tanto Argentina, quanto Alemanha, ainda mais o Maracanã, eram ideias tão antigas que ninguém mais conseguia mensurar aquilo direito. Mas a imagem permaneceu, sempre ela. A imagem da emoção daquelas pessoas, parecia ser tão rica e, mais importante ainda o caos de não saber exatamente como cada uma daquelas setenta mil almas estava se sentindo, de ter de imaginar o que todos eles estavam sentindo, sem ter muito conhecimento sobre as reais razões que fizeram gente tão diferente viajar o mundo para estar no mesmo lugar, na mesma hora, vivendo o mesmo momento. Isso era tão... anacrônico.

Voltou para onde estava como se fechasse milhares de janelas de poup-up (ah, isso era do século XX na verdade, mas ali era muito difícil mensurar corretamente as fronteiras entre esses mundos) e olhou para o céu. Púrpura? Desde quando ele tivera essa cor? Desde quando os pássaros voavam de cabeça para baixo e para trás fazendo tudo ao contrário como num moonwalk perpétuo? Desde quando aquele rio teria virado mar e desde quando ela se movia enquanto pensava, batendo asas num borboletear esfuziante? Desde quando ela não era ela? Desde quando o mar começou a cair e as ondas se transformavam em tempestades e relâmpagos revolucionando tudo num esgar infindo? E desde quando o tempo era tempo, a rua era rua e o nada era o nada? Desde que, quebradas as regras de percepção, o sonho e a verdade, sendo um só, eram a medida de todas as coisas.


Púrpura. Começou a ouvir uma canção tão antiga quanto o tempo. E lembrou-se que não havia de ser nada, que daqui a pouco eles chegariam com os remédios e o sol viraria sol e todas as cores seriam exatamente como deveriam ser. Ficou ainda muito tempo olhando os bichinhos de luz acertarem a luminária em sua sala totalmente estofada, enquanto se contorcia em delírios.