Saudades do que não foi
Saudades é desses sentimentos que é muito difícil de explicar para as crianças, mas parece que todo mundo sente. Há uma grande quantidade de matizes para isso e vez ou outra, ainda mais pra mim que moro longe de onde nasci, é uma coisa tão forte que acaba dando um aperto no peito de lembrar das coisas que já foram caras pra mim e não estão próximas. Mas nesse post a ideia é falar de uma tendência contemporânea de sentir saudades do que não existiu.
Não que a contemporaneidade, bode expiatório de todos os males, seja a responsável única por essa especificidade. Mas, nos últimos tempos, com maior acesso à informação e com uma tendência de revisionismo da nossa história -- a recente e a já não tão recente assim -- criou-se uma geração de pessoas com saudades daquilo que não viveu: jovens de 20 anos querendo a volta da ditadura, balzaquianos fantasiando sobre Woodstock ou, pior ainda, gente que nem terminou a faculdade vivendo como se estivesse na belle epoque. Longe de mim querer desdenhar dos sentimentos, muitas vezes genuínos, dessas pessoas. O que eu pretendo mesmo é fazer um crítica (que tem muito de autocrítica) a essa tendência de reviver o que não se viveu.
Os ataques constantes ao individualismo da contemporaneidade passam, muitas vezes pela ignorância sobre outras épocas, outros costumes e outras realidades: o anacronismo. Ora, temos nossos problemas, mas eu tenho orgulho de viver em um tempo em que a escravidão negra foi abolida, existe divórcio e Penicilina. Existiu toda uma construção dialética e histórica que nos trouxe até aqui e, convenhamos, em muitos aspectos vivemos no melhor dos mundos.
Porém, esse mesmo caráter pode impactar nossa vida, sobretudo amorosa. Tentamos fantasiar relações que não deram certo, principalmente quando estamos infelizes. Tentamos imaginar como seria estar com pessoas hoje que, por diversos motivos, nunca fizeram realmente parte de nossas vidas. E, por uma apelo totalmente natural, tentamos esquecer os motivos que nos levaram a estar com quem estamos e não com quem não estamos.
A glamurização do que nem aconteceu representa nossa resiliência como humanos. É um aspecto central de nossa identidade cultural e fonte de nossa sobrevivência. Mas, talvez pela primeira vez na história desse planeta, seja possível querer mais do que a sobrevivência, almejar a eternidade, embora as dúvidas existenciais sejam exatamente as mesmas que o primeiro humano teve quando teve consciência de sua finitude. E essa busca pelo que houve de bom no passado - mesmo que isso seja mentira - é uma tentativa efêmera de reconstruí-lo em matizes favoráveis.
A questão é que a consciência envolve envolvimento, ser capaz de criticar o próprio passado e construir o futuro a partir do que se tem. E envolve também um distanciamento emocional de si mesmo. Pode-se construir uma impressão de felicidade a partir de mentiras, mas elas desmoronariam a partir do momento que as mesmas se mostrassem como realmente são: vazias.
Combater as saudades do que não se viveu é uma forma de encontrar-se consigo mesmo e aceitar-se. É uma contribuição não apenas para sua sanidade, mas principalmente para ter consciência sobre a fugacidade da sua memória e do seu efêmero e vazio papel na construção da História, do presente e do futuro.
A vida é um sopro, como dizia o Niemeyer. Que nele não haja desperdício.